segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Nos Mares do Fim do Mundo


Quando li este livro..fiquei impressionada por duas razões...uma pela escrita tão real de estórias da Faina Maior que desde pequena ouço nesta minha terra de Ílhavo...depois por serem tão reais que até falavam de antepassados de amigos meus actuais..por isso e nos próximos tempos este será o ponto de encontro com...Bernardo Santareno e o seu livro de crónicas..Nos Mares do Fim do Mundo

...."António Martinho do Rosário, nascido em Santarém e médico de formação, era o nome verdadeiro de um dos maiores dramaturgos portugueses do séc. XX - Bernardo Santareno. Um dos seus primeiros livros, que publicou em 1959 e que impressiona pela sua narrativa…simples mas real…“Nos Mares do Fim do Mundo - Doze Meses com os Pescadores Bacalhoeiros Portugueses, por Bancos da Terra Nova e da Gronelândia”. Este quase livro de memórias surgiu porque devido à sua formação médica, a 1 de Abril de 1957, embarca para a pesca do bacalhau no N-M “David Melgueiro” e em 1958 faz uma segunda viagem a bordo do N-M “Senhora do Mar” prestando serviço no N-H “Gil Eanes”. É quase um diário de bordo relativo a dois anos em campanha no bacalhau, descrevendo situações e emoções, anotando histórias orais que normalmente se perdem nas ondas e na velhice dos homens….
Este será o primeiro de alguns dos contos desse livro que irei relembrar neste blogue…
Livro que impressiona quem o lê e muito mais gentes de Ílhavo como eu.
O referido excerto refere-se a um caso que se passou a bordo do lugre “Granja” e esta história, Santareno ouviu-a da boca dos homens a bordo do "David Melgueiro", conto esse já na altura passado há mais de quinze anos
"Foi no Granja, um velho lugre de três mastros, ao que me dizem já desaparecido. O Albino "algarvio" era o bobo do veleiro: não havia ninguém na companha, desde os moços de convés até aos oficiais da ponte, que não gostasse de "molhar a sopa".
Uns puxavam-lhe a camisola, outros tiravam-lhe o barrete e todos o feriam com graçolas pesadas, achincalhando-o com alcunhas e risos destemperados. O Albino ia sofrendo em silêncio e às vezes, que remédio!, chegava mesmo a emprestar aos lábios um sorriso dolorosamente pregueado. Mas no interior, lá por dentro, era uma chaga viva, um cancro que, sem tréguas, o vinha roendo: Malvados! Se lhes pudesse ser bom... Mas não podia. Enfim, uma desgraça: ele, ali no navio, era o fantoche, o bombo onde todos malhavam, o escarradoiro para onde, sem cerimónia, os outros cuspiam! Mas tantas lhe faziam que um dia... ora, ora, um dia... nada, sempre nada! Estava sozinho, não tinha ninguém por ele: como um bicho desprezível e feio... Feio! Todos lho chamavam. E cabeçudo, e torto, e marreco... Feio: de tudo, seria talvez o que mais o fazia sofrer!
Por duas vezes já, em acessos de raiva, calcara a pés juntos o espelhinho de algibeira. Ah, mas eles não sabiam ainda quem era o Albino! E daí talvez tivessem razão: em muitas horas, quase sempre!, sentia-se manso e receoso como um boi capado. Até que um dia, só até um dia!... Que se acautelassem, pois uma vez o palonça, o pobre diabo, podia perder a cabeça e... Um mar de gargalhadas apagava sempre as suas ameaças: Como os odiava, nestas alturas! E passava as noites a remoer planos de vingança, arrepios de terror e lágrimas de abandono. Então ele, Albino, não seria um homem como os outros?! Tinha que o provar, tinha que lhes mostrar do que era capaz. Era um homem, ele era um homem!
Mas os dois piores, os mais verdugos, seriam o cozinheiro Ricoca e o seu ajudante, o Mazorro: Ganhara-lhes medo, só de vê-los ficava com febre! Ainda ontem o Ricoca, à saída da cozinha, lhe passara uma rasteira de tal jeito, que ele fora estatelar-se no convés, no preciso momento em que uma grande onda galgava a amurada: Ficara todo encharcado, da cabeça aos pés. Em redor, os outros apertavam o ventre, de tanto rirem...
Ná, não podia continuar assim: perdera o gosto pela vida e sentia-se como um espantalho de eira, como uma vela esfarrapada ao vento. Os outros faziam-lhe tudo quanto queriam e ele nem reagia, sempre se ficava quedo e mudo: Verdade, verdadinha, ao cabo e ao resto, não passava dum reles cobarde. Só de pensar na mulher e no filho, sentia a cara arder de vergonha e o corpo alagado em suores frios: Rico chefe de família, não haja dúvida! Ah, mas aquele Ricoca!... A raiva que lhe tinha! E o outro, esse Mazorro do diabo, não era melhor... Pudesse ele! Tinha que poder: ou arranjava coragem para tirar vingança daqueles dois, ou deitava-se ao mar. E, noite após noite, foi acumulando projectos, imaginando torturas... Mas vinha a manhã e era como se o vento marítimo lhe apagasse o lume das veias: cada dia mais amarfanhado, mais triste. Uma miséria, uma vergonha! Aquilo tinha que acabar: ou ele, ou os outros dois! Daquela noite não passaria. Mas como? Sòzinho, apenas com as suas próprias forças, não podia: estava mais que visto.
E, contra o seu costume, naquela tarde, logo ao jantar, bebeu fartamente. E depois continuou... até sentir fósforos de lume acenderem-se-lhe na cabeça. Os da companha, admirados, riam e davam-lhe palmadas nas costas. Então, veio o Ricoca: "EH, ALBINO! EH, ALGARVIO!, ATÃO O QUE É ISSO, HOME? QUERES AFOGAR AS MÁGOAS?... CALEM-SE PRAÍ, RAPAZES: NA SABEM QUE ELE INDA NA RECEBEU CARTAS DA FAMÍLIA? SÃO COISAS QU´ACONTECEM A CALQUER MORTAL: SE CALHAR A MULHER..."
E os risos chocarreiros apertaram-no, como um círculo de chumbo a ferver. Um pouco cambaleante, o Albino conseguiu erguer-se à altura do cozinheiro: olhos nos olhos do inimigo, as mãos contraídas nos bolsos, os dentes arreganhados como os dum lobo, o "algarvio", por momentos e em silêncio, bafejou com o seu hálito azul espesso a cara surpreendida do Ricoca; depois, de súbito, soltou uma gargalhada impressionante, estridente e sacudida como um soluço e, sem palavra, afastou-se precipitadamente dali. Desta vez os pescadores não chicanaram: antes ficaram calados, inquietos, num vago pressentimento de perigo.
E realmente foi nessa mesma noite (quantos, passados já mais de quinze anos, ainda a recordam angustiados!) que o Albino, mais conhecido no mar pelo "algarvio", esfaqueou barbaramente, enquanto dormiam nos beliches, o cozinheiro Ricoca e o seu ajudante Mazorro: Cego de fúria, bêbado de vinho e de sangue, deu facadas à toa, no peito, no pescoço... por onde achou carne penetrável! Quando, enfim, conseguiram arrancar-lhe a lâmina das mãos, o Albino mostrava a face tinta de vermelho e, em uivos lamentosos, chorando e rindo convulsivamente, repetia baixinho: "Ai a minha mulher... ai, o mê filhinho... estão desgraçados, estão desgraçados!..."
E o "algarvio" foi logo amarrado ao mastro do meio, com guarda permanente. Toda a noite ondeou, em volta do assassino, uma vaga crepitante de archotes. O vigia recebera ordem para disparar contra quem quer que tocasse no preso: Só por isso, o Albino não foi estrangulado naquele anel de lume, movediço e feroz. Quando a madrugada veio, o Albino, esfarrapado, sujo de sangue, estava roxo de frio e de terror! A cada ameaça, a cada impropério, a cada escarro que lhe lançavam os da companha, o homem só gemia: "AI, O MÊ FILHINHO... AI, O MÊ FILHINHO!..." Mais não dizia. E, nem a neve que incessantemente caía, nem as ondas do mar que mais duma vez o cobriram, puderam limpá-lo daquele sangue.
Depois levaram-no para o "Gil Eannes". Aí, mais compreensivos, deixavam-no andar à solta pelo navio. Mas ele nunca mais quis falar. E mal comia. De noite, ouviam-no chorar. O comandante, condoído, tentava animá-lo: o Albino sorria tristemente, abanava a cabeça e, sem palavra, punha os olhos no chão. Assim sempre. Foi ainda com este mesmo sorriso triste, sem ódio nem fúria, que, naquela manhã de procela, o Albino galgou a amurada do Gil Eannes para se lançar ao mar revolto. Houve quem o tivesse visto, neste preciso momento: e todos afirmam que ele cumpriu o acto serenamente, sem a costumeira precipitação desesperada, sem a mínima atitude ritual, nada disso...simples , naturalmente, com o tal sorriso triste e infantil a chorar-lhe nos lábios. Lá ficou. Não foi possível salvá-lo….”

Fonte: Blogue ”Caxinas de Lugar a Freguesia”

in “Nos Mares do Fim do Mundo - Doze Meses com os Pescadores Bacalhoeiros Portugueses, por Bancos da Terra Nova e da Gronelândia”. - Bernardo Santareno 1959

4 comentários:

Laurus nobilis disse...

Nunca li, mas fica registado!

Marieke disse...

Vale a pena..os contos que compõem o livro são tocantes..uma experiência fabulosa pela mão de Santareno

Anónimo disse...

Olá. Onde posso encontrar este livro?
Fatima

MJ FALCÃO disse...

Estou precisamente a ler Nos Mares do Fim do Mundo! Li muitas coisas de Bernardo santareno, teatro, mas não tinha lido este livro que me encantou. Procurando na net descobri o seu blog e gostei muito de ler o que diz.
Bom Ano!